segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Shikára

Em um terreno onde não
se sabe se água ou se chão,
vê-se um homem agachado
bem na pontinha da Shikára
panchú cobrindo o cangári.

Com a ajuda de um remo,
retira a água que penetra lá dentro.
Faz isso fumando um cigarro,
como se não se passasse nada.
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segunda-feira, 9 de novembro de 2009

SAP

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Essas línguas estrangeiras...
Sempre iguais, daqui à China!
Mas só versão brasileira
É que é mesmo Herbert Richers.
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sexta-feira, 6 de novembro de 2009

com base em nova pesquisa

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se acaso cansa do sofá
o gato quer que a gente
assista ele comer
mais uma vez
seu bocado de ração
no potinho posto
junto ao pé da mesa
(para não correr)

não dizem os doutores
“coma pouco diversas vezes
ao longo do dia”?
é o que dá deixar
as revistas semanais
abertas na mesa da sala:
nove em cada dez gatos
sabem ler
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quarta-feira, 4 de novembro de 2009

revolução franqueza

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prometendo libertar o povo
agrupamo-nos em um movimento
questionamos tudo e todos
combatemos
decapitamos a monarquia
os clérigos, a burguesia
insatisfeitos, decapitamos
uns aos outros:
nossa mania mesmo
era fazer rolar cabeças
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segunda-feira, 2 de novembro de 2009

metamorfose maior

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o que sabe
a sóbria borboleta
sobre os simbolismos
de sua vida?
lá no casulo
uma lagarta se farta
comendo folhas
dormindo profundo.
se finalmente abre as asas
voa como pode
acasala, põe ovos
sem nenhuma metáfora.
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sábado, 31 de outubro de 2009

o nada

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virei-me do avesso
não tinha etiqueta
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sexta-feira, 30 de outubro de 2009

água farta

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era uma vez
um menino
que nasceu
junto ao mar
debaixo de chuva
e nunca viu
o sertão
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quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Cancu

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Pênisula
The You
Can Can
Tãn-Tãn,
Léxico:

O furo
Cão destro
Eu conto
Do.

Não sou
Bruna
Da!
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quinta-feira, 22 de outubro de 2009

sorriso russo

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não olhe para mim
com essa cara de moscou
esses olhos orloff
seu sorriso russo
sem mais montes urais
partindo-me em dois
causando o cáucaso
não invoque vladivostok
nem me toque
ingrato, ingrato
leningrado
isso não vai ficar assim
ainda saio da miséria
te largo na sibéria
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terça-feira, 22 de setembro de 2009

Aeroportuário

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Esse aeroporto faz minh’alma doente
Um não-lugar que convalesce e estiola
E eu vou buscar um ópio que consola
O Oriente ao oriente do Oriente.

O ticket de bordo que me foi dado
Insiste em sumir-me — mas que cabeça! —
E, por mais que o procure até que adoeça
Já não o encontro para embarcar-me

É a mesma inépcia que me leva, então,
A roubar versos d’outro em minha escrita
Onde andará o pudor na poesia?
No próprio gozo da recriação?

A sala de embarque é uma coisa triste
Embora a gente se divirta às vezes,
Com best-sellers e eme-pê-treses
Já a minha sina é fazer pastiche.

Será que deverei permanecer
Aqui no Oriente, nesta Índia
Semelhante àquele filme do Spielberg
Num terminal obrigado a viver

Maldito aeroporto! Não há remédio.
Preciso do ticket neste momento
Voltar passo a passo em meu pensamento
Esse problema está ficando sério.

Procuro. Canso. Peço a São Longuinho.
Mas que peste! Tenho que me lembrar
Pra que fui visitar a Índia que há
Se Índia não há senão a alma em mim?

Pertenço a um gênero de brasileiros
Que depois de estar a Índia posta em versos
Ficam sem trabalho ou buscam um método
De repetir tudo mais uma vez.

“Leia o diabo do livro”, a gente apela
Mas nem eu leio os livros que me chegam
É sempre o Oriente, essa besteira
Que a gente trova, tenta tornar bela.

Estou no aeroporto à força! Desespero.
O avião já vai partir uma hora dessas
Preciso urgentemente encontrar nessa
Sala alguém que possa me socorrer.

Eis que o ticket como uma flor da Índia
Que não vim encontrar na Índia, nasce
No meu cérebro, pronto a lembrar-se
Agora sim, graças a Deus, enfim!

E estava o tempo todo na carteira!
Agora posso entrar nesse avião.
Ser um brâmane era a minha intenção,
Mas sem cabeça? Melhor ser guerreiro.

Ah, que bom que é estar de partida
Sem ter com um terrorista e seu estouro.
No reflexo do vidro estou mais louro
Deve ser esse forte sol da Índia.

Afivelo o cinto com fé e calma
Livre dessa situação confusa
Já o avião o firmamento cruza
E basta de paródias em minh’alma!
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sábado, 29 de agosto de 2009

Anabela

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cinco horas
Hotel Chiado
ao lado da FNAC
último andar
um bar com vista
soberba sobre a cidade

sou tipicamente
portuguesa
cabelo castanho
escuro curto
vai ser fácil
me encontrar
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sábado, 22 de agosto de 2009

Contexto

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Indissociável a vida
que está presente em toda escrita.
Pessoas, cidades, histórias
entre elas a poesia.
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sábado, 18 de julho de 2009

haicai prismático

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banho ao meio-dia
a água bate no corpo
respinga arco-íris
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quarta-feira, 15 de julho de 2009

haicai gostoso

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..
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a caixa de bis
devorada sem demora
bolinhas azuis
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sábado, 27 de junho de 2009

Entrevista para Pilotis

(por Camila Justino - Março, 2009)
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domingo, 21 de junho de 2009

haicai de verão

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de infinitas lágrimas
e farelo de polvilho
são feitas as praias
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quarta-feira, 17 de junho de 2009

a uma libélula


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a janela aberta
é mais que pretexto
para uma libélula
errática entrar
em casa. parece
um louco helicóptero
batendo no teto
ou de encontro ao vidro
da janela, onde
salpica beijinhos
ligeiros em seu
reflexo liberto
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sábado, 6 de junho de 2009

origamis urbanos

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ao explorar cidades estranhas
encontrar-me não é o pior
se faço consulta cartográfica
uma séria pergunta me assola

mas por que há de ser tão difícil
dobrar novamente um mapa?

questiono o quanto agüentarão
suas juntas até se soltarem

em quadrados avulsos — enfim
novo planejamento urbano
a cada vez que fico perdido

mais difícil é dobrar o mapa
como se uma cidade não se
comprimisse assim, impunemente
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quarta-feira, 27 de maio de 2009

Yôga

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De pé.
Tire um pé do chão.
Agora o outro.
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quarta-feira, 20 de maio de 2009

Poema Limpo

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De natureza escorregadia,
Vem perfumado de camomila.
Traz sua essência de jasmim
Para o que há de intimo em mim.

Também sabe levantar a bruma,
Que no caso está mais para espuma.
A renovação em minhas mãos,
Que vai da minha testa ao meu tendão.

Adstringente, básico e jâmbico,
Totem em formato anatômico,
É o Deus da pele radiante
Abençoando com hidratante.

(Atenção também àquele lance:
Bastante cuidado com os menores
Caso haja contato com os olhos
É só lavar com água abundante.)
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domingo, 17 de maio de 2009

As rosas de mármore

..............................a Diderot
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Suave voz
a soerguer os pássaros
que sobrevoam o jardim.
Ao olhar de cá
ninguém diria ser assim.
Num estopim de folhas e caules
impossibilita-se o colher.
Entre as plantas
brotam intenções:
fundar uma república distante,
desbravar outros orientes
(seria pedir demasiado?)
Como há cores nessas rosas
em todas as flores
que desejo regalar-te.
Contudo, ai de nós,
minhas rosas são de mármore
termina de esculpi-las
com tua voz.
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segunda-feira, 23 de março de 2009

Contos de Mary Blaigdfield – a mulher que não queria falar sobre o Kentucky (parte V)

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Cabelo novo. O visual ficou um pouco diferente. Para melhor, é claro. Mais feminina. Mas para isso teve de aturar três horas naquele lugar. Conversas que não a entretinham rondavam por todas as partes. Muitos olhos se entreolhavam nos espelhos. Um odor desagradável de cabelo queimado tomava conta do local. Gritinhos, barulho de secador, fofocas!

Aquele lugar não tinha nada a ver com ela — não tinha paciência com esses assuntos. Nem paciência, nem tempo. Era uma questão de prioridades. Todo o projeto estava em risco! Segredos inimagináveis estavam para ser revelados! Um grande pesadelo... E, no meio de toda a confusão, de todos os estresses dos últimos dias, ela ainda havia arrumado um espaço para ele na sua agenda.

— Corolla branco. É o da senhora?
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— Sim, obrigada.

Mary Blaigdfield pegou o carro e pôs-se a caminho do local combinado. Dirigia com cuidado, pois suas unhas ainda não haviam secado. Sorte o carro ser automático, pois ela não dirigia muito bem. Afinal, ela não entendia nada sobre carros.

Sinal vermelho. Oportunidade para se olhar no espelho. A franja estava mais clara do que o resto do cabelo. “Que idéia foi essa de franja?” — pensou, irritada. Ela tentou, mas foi incapaz de se recordar de uma vez sequer que tenha saído do salão satisfeita.
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Dirigindo por mais alguns minutos, refletiu sobre todos os acontecimentos, uma coisa acontecendo por cima da outra. Isso gerava uma angústia muito grande.
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Finalmente chegou ao prédio de Henri Havengard, que a esperava com um pequeno buquê de flores sob o braço esquerdo, junto ao corpo.

“Ah, Henri... Flores... O mesmo Henri de sempre...” — o coração de Mary se rendeu aos eternos encantos de um antigo amor. Todas as barreiras desmoronaram com aquele singelo gesto de delicadeza.

Parou o carro rente ao meio-fio para que Henri entrasse. Ele abriu a porta e, com um largo sorriso, sentou-se no banco do carona.

— Isto é para você, a mulher mais encantadora de todo o leste!

— Oh Henri! Não preci... — foi interrompida. Oh, meu Deus, o que era aquilo? Flores roxas! A botânica já vinha usando Mendolatium para a produção de novas flores havia algum tempo, mas mesmo assim ela se assustou — Henri acabou notando seu espanto.

— O que houve? Há algo de errado?

— Não — disse tentando parecer mais calma. — É que... Sou alérgica...

— É alérgica a flores? Não me lembrava disso.

— Não, não. A Mendolatium... Essas flores são produzidas a partir da mutação ao Mendolatium.

— Alérgica a Mendolatium? Desculpe... É que nunca imaginei que algo assim fosse possível. Você sabe, eles dizem por toda parte que...

— Eu sei, Henri. Eu sei o que eles dizem. Vamos deixar essas flores de lado e sair. Isso não é motivo para maiores aborrecimentos. — Mentira. Mary passaria o resto da noite aflita. Henri ressurgiu de muito longe no passado, e isso era magnífico. Mas com ele vinha o Mendolatium, que por sua vez a remetia ao Projeto, aos problemas, ao...

Aquele fluxo de idéias não poderia continuar. “Não nesta noite!” Ela precisava se controlar, respirar fundo e devagar. Era Henri que estava em jogo dessa vez.

— Pronto. Problema resolvido! — disse o sempre simpático homem, fechando a sua janela logo após ter jogado as flores para fora do carro. — Nada de Mendolatium da próxima vez!
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“Oh, Henri, por favor, pare de pronunciar essa palavra...” — pensou, esboçando um falso sorriso pela piada.

— E para onde vamos? — Ela perguntou, mudando de assunto.

— Eu fiz uma reserva para nós no Côté D´Olegan Bistrô. Aposto que devem ter muitas opções sem Mendolatium — disse sorridente, repetindo a piada.

“Henri, chega, por favor...” — pensou, agora se esforçando ainda menos pelo sorriso.

— Então vamos. — disse, dando a partida, antes que ele começasse a pensar em uma nova frase com a palavra Mendolatium.

Ela dirigia nervosa. O silêncio estava começando a se tornar um incômodo; aumentou um pouco o som, que tocava algum sucesso dos anos 70 (Não queria saber do passado). Foi Henri que quebrou o silêncio.

— E então, em que trabalha atualmente? Ainda confecciona jóias?

“Henri, Henri, será que você não dá uma dentro?”

Como ela falaria sobre seu trabalho? Que pergunta!! Parecia que Henri estava fazendo de propósito, alfinetando-a a cada fala. — mas não podia ser verdade. Só de imaginar que Henri poderia saber de algo já enfraquecia todo o seu corpo, fazendo-o tremer. Como ele poderia ter descoberto alguma coisa? Seria esse o real motivo do encontro? Ele estaria envolvido? Ela podia se lembrar de já ter conversado sobre ele com Larie, mas... Ela não sabia mais em quem podia confiar.

— Ultimamente não tenho trabalhado em nada; tirei uns dias pra mim mesma...

— Entendo. Eu continuo na mesma. Os negócios melhoraram por lá. Tio Ben pretende transformar a fazenda em um parque ecológico. Já imaginou aquele lugar repleto de crianças, de animais. Assim como um Jardim Zoológico. Já imaginou Mary? Um Jardim Zoológico?

“Não é possível! Não, Não, Não” — pensou. Coincidência ou não, cada assunto que Henri colocava em pauta era um trauma com o qual Mary teria que lidar em questões de segundos, antes de dar uma resposta ao menos aceitável. Improvável ele saber do incidente do Jardim Zoológico! Mas por que ela estava sendo obrigada a lidar com tudo aquilo novamente?

— Eu estive em um há pouco tempo. — pausa — Você pode me passar a minha bolsa, que está no banco de trás? Preciso de um cigarro...

— Você voltou a fumar? — perguntou Henri, surpreso, enquanto lhe entregava a bolsa.

— Há alguns dias. Tenho passado por momentos um pouco turbulentos.
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— Problemas?
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— De certa forma... Henri, querido, podemos ficar calados enquanto fumo esse cigarro?
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— Ahn? Claro. — respondeu ele, achando que havia errado em algo que havia dito. Não sabia ele que havia errado em tudo!
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Mary Blaigdfield abriu sua janela e acendeu o cigarro, tentando se acalmar. Henri Havengard não desviava o olhar. Ele estava com um certo ar de bobo, como de um cachorro que não entende o que fez de errado para desagradar o dono. Aqueles maravilhosos buracos no jardim não haviam agradado?
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Mary pensou muito, e sobre muitas coisas durante esse cigarro. Poderia ele realmente saber de tudo? Não seria a hora de largar tudo e fugir para algum país distante? Mas ela não era uma criminosa — Fora obrigada a participar daquilo tudo contra a sua vontade.
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E esse sujeito, com cara de idiota, que retornou do passado para lhe fazer toda a lista de perguntas inoportunas que somente as entidades divinas poderiam ter formulado!
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Em meio àquele silêncio — que em situações normais seria desconfortável, mas que para ela era a certeza da tranqüilidade — se podia ouvir somente algum hit dos 70 ao fundo, vindo das caixas de som do banco traseiro.
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De repente, Mary se desesperou ao ver que o filtro do cigarro estava próximo, e com ele chegaria a inevitável pergunta de Henri. Ela deu o último trago e jogou o cigarro pela janela.
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Henri se prepara para dizer algo.
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As mãos de Mary tremem ao volante. Ela já sabe o que ele vai dizer. “Oh não, não hoje...”
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— Mary...
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“Não pode estar acontecendo de novo...”
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— Mary, eu sei...
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“É impossível, é impossível. Hoje não, eu imploro...”
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— ... o que você fez...
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"Não pode ser..."
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— ... no cabelo! É essa franja! Eu estava reparando que ela está mais clara que o resto do seu cabelo. Você já usa esse penteado há muito tempo?
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Ufa, Mary! Essa foi por pouco, hein?
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Ela é Mary Blaigdfield, e ela não que falar sobre o... Sobre o... Vocês já entenderam.
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sábado, 21 de março de 2009

Contos de Mary Blaigdfield – a mulher que não queria falar sobre o Kentucky (parte IV)

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A Dra. Sofia era realmente uma pessoa sofisticadíssima. Seu consultório parecia decorado de tal maneira que o paciente se sentia compelido a falar, a se abrir, a trabalhar as lembranças e emoções de forma tal, que o resultado era sempre revelador. Ela deve seguir o Feng Chui, ou alguma outra filosofia milenar de arrumação de móveis, pensava Mary Blaigdfield recostada no divã. A escolha dos quadros, das cores, o elefantinho com o traseiro para a porta, a abundância de flores, tudo parecia escolhido a dedo.
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Sim, finalmente Mary Blaigdfield aceitara que precisava de ajuda, qualquer tipo de ajuda. Todos haviam insistido muito que era necessário se tratar. Ela ainda podia lembrar-se de Larie Bofferman em sua sala como se estivesse acontecendo agora mesmo, seu rosto listrado de sobra e luz pela persiana: “A psiquiatra será totalmente paga pelo projeto, não se preocupe. Tentarei enquadrar você no caso dos feridos de guerra. Você sabe, Mary, com todos os benefícios que isso poderá representar para a sua aposentadoria...” Eles estavam insistindo para que ela se aposentasse! Mary, entendeu logo o que estava se passando e aceitou jogar o jogo deles. Era o melhor a fazer, até porque, ninguém melhor do que ela sabia qual a outra forma de ser tirada do baralho — nada muito agradável. Ele chegou a dizer que o projeto seria desativado, e que era melhor mesmo que ela aceitasse a proposta da “licença médica” antes das demissões em massa e transferências. “Com a volta dos Democratas ao poder a nossa verba não está mais garantida” Nossa verba, nossa verba...
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Durante todo seu cinema mental Mary manteve-se calada, com a Dra. Sofia sentada a sua frente, fitando-a calmamente. O combinado era que ela não precisava falar, se não quisesse... Às vezes a Dra. fazia perguntas, talvez para não deixar a sessão em branco. Mas isso só nos dias em que Mary estava especialmente desanimada. Não era o caso hoje.
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— Foi você mesma quem decorou a sala?
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A Dra. levantou as sobrancelhas e sorriu orgulhosa.
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— Sim, fui eu mesma. Gosta?
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— Sim, bastante. E olha que não é fácil agradar-me, mas aqui me sinto muito tranqüila...
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— Eu uso do Feng Chui.
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“Sabia!”
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— Ah, é mesmo? (Pequena pausa) Ah, a China...
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— O que é que tem a China?
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— Os chineses... Eles queriam roubar o projeto...
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— Roubar o projeto? Como assim?
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— “Roubar o projeto” é modo de dizer. Eles eram nossos maiores inimigos, isso sim. Queriam por que queriam a proto-fórmula do Mendolatium. Mas não conseguiram... Pelo menos não enquanto eu fui diretora do departamento de segurança e anti-espionagem. (Mais uma pequena pausa) Doutora, você tem certeza de que tudo aqui fica apenas entre nós duas?
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— Claro, faz parte da ética profissional, eu já lhe disse isso.
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— Dra. Sofia, você já conferiu se a sua casa não possui escutas telefônicas?
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— Srta. Blaigdfield, o que conversamos sobre o seu complexo de perseguição? Eu já lhe disse que não estou ligada a este “projeto governamental” de que você tanto fala. Nunca conheci nenhum dos homens que você menciona e não existe nenhuma câmera em meu consultório! Ou estabelecemos uma relação de confiança ou não poderei continuar o meu trabalho. Serei obrigada a te indicar para alguma colega.
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— Desculpe-me. É apenas porque sinto que tudo o que tenho a dizer é irrevelável, e pode custar até mesmo a sua vida. Você não sabe os perigos de saber demais...
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— Claro que sei. Eu sou uma psiquiatra doutorada, estudei bastante na vida. Mary, por acaso já ouviu falar em Prometeu?
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— Russo?
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— Não, grego. — após uma pequena pausa, a psiquiatra prosseguiu — Olha, deixe para lá... Vamos falar sobre o Kentucky.
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— Ahn?!?!?!
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— Por que o susto, você não é do Kentucky?
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— Eu não quero falar sobre o Kentucky...
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— E por quê? Tem algo a ver com o seu passado?
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— Eu já disse que não quero falar sobre o Kentucky.
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— Ok, não precisamos falar sobre o Kentucky. Por que não me conta mais um dos seus sonhos. Achei que da última vez a experiência foi positiva.
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— Sim, qualquer coisa. Mas acho que não tenho sonhado muito ultimamente.
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— Tente se lembrar, Mary.
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Mary fechou os olhos lentamente, tentando concentrar-se.
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— Tem um sonho, sim. Não sei se foi esta noite, ou há dias atrás.
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— Conte-me o sonho.
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— Eu estou em um carro.
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— Dirigindo?
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— Não, estou no banco de trás.
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— Quem está dirigindo?
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— Ninguém está dirigindo.
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— Ninguém?
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— Ninguém, o carro está caindo. Balança muito. Eu não consigo sair. Estou presa. Lá fora, tudo roxo. Para fora da janela do carro. Sim, roxo! Mendolatium! Estou em uma espécie de rio de Mendolatium, caindo. Afundando com meu carro. Sem ter como sair.
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— E não consegue alcançar o Mendolatium?
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— Acredite, Dra. Sofia, eu não inalaria Mendolatium nem em sonho.
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— Então não gosta de Mendolatium?
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— Nem um pouco.
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— Então o sonho é pior do que imaginei a primeira vista.
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— É?
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— Sim, fora do vidro do carro, não existia a possibilidade de salvação, mas sim uma situação ainda pior. Ainda teremos de entender melhor o porque de você associar isso ao Mendolatium.
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— Por motivos nada obscuros, doutora. As razões são concretas, e dizem respeito ao projeto.
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— Sim, sim, entendo. Falaremos mais sobre isso na sua próxima seção, o seu tempo terminou.
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— Graças! — disse baixinho.
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— Como?
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Gracias, é "obrigado" em espanhol.
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— Ah, fala espanhol? Dessa eu não sabia, Mary. Veja, continue tomando os medicamentos como eu receitei. Se por acaso acordar de madrugada suando novamente tome mais uma da pílula vermelha, e se as convulsões começarem aplique a injeção rápido. Qualquer coisa, você tem o meu celular.
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As duas se despediram, Dra. Sofia ainda abriu a porta da sala para Mary, que saiu agarrada à própria bolsa, descendo as escadas do consultório.
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Ela é Mary Blaigdfield, e ela não quer falar sobre o Kentucky.
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sexta-feira, 20 de março de 2009

Contos de Mary Blaigdfield – a mulher que não queria falar sobre o Kentucky (parte III)

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Leões! Ela jamais gostou de leões. Eles não fazem nada! As leoas sim, essas trabalham, caçam, cuidam da prole. As leoas são as verdadeiras rainhas da floresta. É como num tabuleiro de xadrez: a rainha se matando na horizontal, na diagonal, para ganhar o jogo, e o rei não passa de um grande peão com honrarias. Ah, e sem falar que volta e meia fica em xeque, chamando a esposa para salvá-lo. Lamentável.
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Não, certamente a jaula dos leões não era a que mais a interessava. E havia tantas coisas interessantes para serem vistas ali. “Onde será o setor dos répteis?”, pensou olhando para uma placa. Ficou examinando.
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“Você está aqui.”
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“Não, quem está aí é essa bola amarela. Eu estou aqui, em frente à placa!”
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Não eram somente os leões que a incomodavam, o didatismo das placas de informações também.
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Uma coisa era fato: estava por demais estressada. E quando ela ficava estressada, tudo passava a ser um problema. “Tire alguns dias para você mesma” — disse Larie. “Não pode fazer mal a ninguém descansar um pouco”. Ela não entendia para quê! Para que perder tempo descansando, se ela estava ótima? As pessoas vêem problemas onde não existem.
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— Pipoca! Pipoca! Pipoca! — gritava um vendedor, passando com seu carrinho próximo à placa onde ela estava parada. Os gritos eram acompanhados de uma incessante música infantil, repleta de tons agudos. Irritante.
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“Será que quero pipoca?” — pensou. É, o programa não estaria completo sem pipocas.
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— Quanto é a pipoca?
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— Dois e cinqüenta a pequena, e quatro a grande.
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— Uma pequena, por favor.
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— Qual sabor?
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— Como? Sabor? — perguntou distraída.
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— É sabor! Natural, queijo, bacon, chocolate ou Mendolatium?
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Mendolatium! Por mais que já devesse ter se acostumado com aquilo, ainda parecia estranho. Se ao menos as pessoas soubessem de toda a verdade! Todo esse Mendolatium sendo consumido ao redor do planeta! Uma hora, as conseqüências irão vir à tona, mas aí, provavelmente já será tarde demais — pensava em questão de segundos.
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— Natural, por favor.
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Comprou um saquinho e foi-se em direção aos répteis. “Proibido alimentar os animais” estava escrito no saco, acompanhado de um desenho (riscado) de um homem dando pipoca aos macacos. Aquilo a irritou também.
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Era verdade. Ultimamente ela não andava nada bem. Também pudera, com as coisas caminhando daquela maneira. O tempo era cada vez mais escasso, e o seu segredo estava se espalhando. Não era à toa que estava estressada. Daí o motivo desse passeio dominical: pura e simplesmente relaxar.
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Mas a notícia estava se espalhando. Ela podia sentir. E o fato de ela não poder fazer nada, de ser obrigada a relaxar no meio disso tudo, a deixava ainda mais angustiada.
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Cruzou com uma família feliz. Ah... famílias felizes, elas existem! Isso a fazia lembrar a sua família, lembrar o passado. Lembrar o...
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— Mamãe, mamãe! Onde é que tá a girafa, mamãe?
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— Estamos indo para lá, filho! Você vai terminar sua pipoca ou posso jogar fora?
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Ela inevitavelmente prestou atenção e virou-se. Mirou aquele saco de pipoca. Pipocas roxas: Mendolatium! Como aquilo a torturava por dentro. Ver aquela criança inocente, metida no meio de tudo.
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“Todos são instrumentos! Todos!” Ela podia se lembrar exatamente de quando ouviu isso pela primeira vez, havia dez anos. Ela nunca tinha concordado com aquilo. Nunca foi a favor de envolver inocentes, que nada tinham a ver com o projeto.
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Ver aquela criança correndo ali na sua frente, cruzando o seu caminho, sabendo que havia ingerido Mendolatium a estava matando. A música cheia de agudos continuava entrando em seu ouvido e abalando a essência de seu ser — o pipoqueiro ainda estava por perto, certamente.
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Aquela situação estava cada vez mais insuportável! Ela atirou o saco de pipocas no chão e correu. Correu entre os visitantes, quase derrubando uns e outros. Algumas pessoas se assustaram e começaram a correr também. Com o clima tenso que havia se instalado depois da revelação das últimas notícias pelos jornais, era comum tal atitude. Em poucos minutos, uma situação de pânico generalizado tomou conta do local. Filhos se perdendo dos pais, animais gritando, pessoas correndo para todos os lados. Um ou outro segurança tentava acalmar as pessoas, mas era em vão. Latas de lixo eram derrubadas e os seus conteúdos esparramados pelo chão contribuíam com a atmosfera caótica. Vidros quebrados, gritos, choros de crianças.
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No meio daquela situação, ela era a única que sabia por que estava correndo, e sabia também que de nada adiantaria correr. Não havia para onde ir. Era necessário, antes de tudo, manter a calma. Manter a calma!
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Ela parou de correr. A respiração estava ofegante, o coração batia mais do que o peito podia agüentar. Ela se apoiou na barra da grade de uma jaula. Ficou ali parada, exausta. Eram tantos pensamentos vindo à sua cabeça!
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“Gruuuuuuuuuuu! Crupac! Crupac!”
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Um grito estridente soou para ela como uma lança no peito de um guerreiro já convalescido. Papagaios! Ela não precisava de mais isso: papagaios estridentes gritando no seu ouvido.
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Foi naquele momento que o inusitado aconteceu. Um grande absurdo do destino ou apenas parte de uma síncope nervosa? Ninguém sabe, mas foi quando o papagaio virou-se para Mary Blaigdfield e disse:
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— Eu sei! Crupac! Eu sei o que você fez no Kentucky! Crupac! Crupac!
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E o resto todos podem imaginar como foi. Naquela manhã de domingo Mary foi a cereja no grande bolo de caos que o Jardim Zoológico se transformou. Em meio à bagunça generalizada, poucos prestaram atenção em suas convulsões epiléticas-diarréicas. A não ser os papagaios, que embalaram o show agonizante de Mary com um emaranhado de gritos agudos, fazendo a carrocinha de pipocas parecer silenciosa.
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Ela é Mary Blaigdfield, e ela não quer falar sobre o Kentucky.
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quarta-feira, 18 de março de 2009

Contos de Mary Blaigdfield – a mulher que não queria falar sobre o Kentucky (parte II)

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O Café estava mais cheio naquela manhã, disso ela tinha certeza. E o clima do lugar estava diferente também. Uma atmosfera estranha no ar, pessoas que nunca havia visto ali, garçonetes novas. Tudo muito estranho, como um sinal de que algo de ruim estava prestes a acontecer.
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Ela caminhou por entre as mesas até chegar no seu cantinho preferido, sua mesa de sempre, e se deparar com uns estrangeiros ali sentados. Maldita imigração, maldita globalização — pensou, nervosa. Caminhou até o outro canto do Café e sentou-se em uma mesa qualquer.
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Por que o clima havia de estar diferente logo hoje? Justamente hoje, quando ela havia marcado um encontro tão importante naquele local, sempre tão pacato.
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Sentou no banco de couro vermelho e chegou bem perto do vidro da janela. Sempre gostou desse cantinho, desde pequena. Até hoje se lembra das brigas com o irmão quando os pais os levavam à lanchonete. Uma eterna luta pelo cantinho sem saídas e sem entradas, onde ela estaria segura e isolada. Vivendo no seu próprio mundo.
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Pediu um café bem forte para a garçonete e começou a se distrair olhando os carros passarem na rua. Carros de todas as cores, todos os tipos. Tantos carros, e ela não sabia nada sobre carros. Mas nem por isso deixava de se distrair vendo os carros passarem.
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— Mary Blaigdfield!
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Mary é sugada de volta ao mundo real assim que se deu conta de que alguém gritará seu nome. Era quem ela estava esperando.
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— Andrezza Pascuoletto!
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— Quanto tempo!
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— É, faz muito tempo realmente.
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— O seu cabelo está diferente.
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— É, eu cortei.
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— Ficou ótimo.
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— Obrigada. Sente-se.
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Andrezza Pascuoletto senta-se no banco em frente ao dela e também se arrasta até o cantinho, deixando a bolsa e a pasta do seu lado.
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— Este lugar é sempre assim?
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— Não, hoje está diferente, mais cheio. — respondeu Mary olhando ao redor — Mas, Andrezza, nós não combinamos de nos encontrar aqui para analisar o movimento da casa. O que você tem para me mostrar?
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Andrezza tira a pasta do banco e a coloca no colo. Começa a procurar algo. É interrompida pela garçonete trazendo o café de Mary. Pede um capuccino, e continua a procurar até tirar de dentro da pasta um envelope pardo, que coloca na mesa.
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— O que é isso? — pergunta Mary, enquanto adoça o seu café.
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— Fotos. Fotos mostrando o momento em que Larie Boferman aceita dez milhões de Yuri Guriskch no saguão de um hotel em Moscou.
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— Como você teve acesso a esse material?
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— Eu sou muito próxima de várias pessoas lá dentro. Tenho influências no projeto.
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— Isso não explica o fato de você ter tido acesso a esse tipo de material.
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— O que você queria que eu fizesse? Recusasse? Dissesse que não estava interessada neste tipo de informação? — Fala nervosa em um tom de voz mais elevado, beirando o choro.
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— Se acalme, alguém pode prestar atenção em nós.
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— Desculpe...
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— Algo me diz que não foram apenas as fotos que a levaram a marcar esse encontro. Tem algo mais a dizer?
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— Não... ...Quer dizer... ...Tenho sim...
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— Então diga logo, cada segundo que passa é um segundo a menos.
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— É sobre algo que uma fonte do projeto me informou. E diz respeito a você.
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— Como assim? — pergunta espantada.
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— É algo pessoal, mas, como sou sua amiga, me senti na obrigação de...
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São interrompidas pela garçonete deixando o capuccino na mesa. A garçonete se afasta e a conversa continua:
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— Andrezza Pascuoletto, ou a senhora vai direto ao ponto ou eu sou capaz de perder a cabeça!
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— Mary, eu vim aqui para conversar, para saber se você esta precisando conversar...
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— Sobre o quê!?!?
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— Sobre... sobre....
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— Sobre?????
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— Sobre o que ocorreu no Kentucky... Mas sinta-se à vontade, eu não quero forçar na.... — é interrompida pelo olhar de Mary Blaigdfield piscando incessantemente. Nos últimos momentos em que ainda pôde, ela balbuciou:
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— Eu... não quero... falar... sobre o Kentucky.
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É, naquele dia o café estava bem diferente mesmo, mas na verdade ninguém mais parou para prestar atenção nisso depois do show de horrores de Mary Blaigdfield. Convulsões, gritos de dor, histeria, tremedeiras, soluços. Dessa vez ela chegou a urinar nas calças em meio à tremedeira. Andrezza, assustada, se aproximou para ajudar.
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Brewewreerr.
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O grupo de turistas ficou horrorizado quando Andrezza Pascuoletto passou toda engosmentada de preto ao lado deles. Realmente o fedor era horrível.
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Ela é Mary Blaigdfield e ela não quer falar sobre o Kentucky.
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terça-feira, 17 de março de 2009

Contos de Mary Blaigdfield – a mulher que não queria falar sobre o Kentucky (parte I)

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Mary Blaigdfield dirigiu-se até a pia. Como suas mãos estavam sujas!, pensava, girando a torneira. Em milésimos de segundos, a água limpa e corrente se desmanchou pelos dedos sujos da mulher. Realmente estavam sujos.
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— Nada como uma boa água fresca para lavar as mãos, não? — disse ela em voz alta.
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— É, de fato, a água corrente retirará a maioria das impurezas das suas mãos. Se lavar com sabão, então exterminará a maioria dos micróbios e dos outros microorganismos. Mas, não pense que está cem por cento segura apenas por estar lavando as mãos... Muitas coisas resistem facilmente a uma simples lavada de mãos...
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— Como o quê, por exemplo?
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— Como... — A outra pessoa fez uma pausa, como se prestes a fazer uma séria revelação — pó nuclear...
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Naquele momento as mãos de Mary Blaigdfield, que até então se friccionavam, congelaram. Levantou os olhos lentamente até encarar a outra pessoa no reflexo do espelho.
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Mary ficou parada até que a outra pessoa lhe ofereceu uma toalha.
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Enquanto enxugava as mãos, perguntou com a voz séria:
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— Por acaso esta cidade já sofreu algum ataque com pó nuclear?
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— Isso foi há muito tempo. Antes do Larie Boferman, antes mesmo do Paul Mackning... As conjunturas eram outras e isso se deu naturalmente.
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— Por que você nunca me contou isso? — perguntou irritada.
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— Tínhamos medo da sua reação. A entrevista foi transmitida em rede nacional! Se você soubesse a verdade, poderia estragar tudo! O trabalho de anos.
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— Vocês me fizeram mentir para milhões de cidadãos, sem eu nem saber que estava mentindo?
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— Fizemos sim, mas foi pelo bem do projeto. Você precisa compreender.
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— Eu preciso compreender? — perguntou ironicamente — Eu preciso compreender é uma ova! Eu vou convocar a imprensa e informar toda a verdade.
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— Não Mary, você não vai. — retrucou em um tom de voz seco.
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— Vou, sim! Não vou levar esse peso nas costas pelo resto da vida!
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— Não Mary. Você não vai...
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— E posso saber por quê?
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— Porque, se você for, se você abrir a boca, revelaremos para todos os seres vivos desse planeta... — pausa — o que você fez no Kentucky.
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— Eu não quero falar sobre o Kentucky! Eu não quero falar sobre o Kentucky! Eu não quero falar sobre o Kentucky! — Mary Blaigdfield gritou, sofrendo naquele banheiro. Começou a se contorcer, lembrando-se do Kentucky. Contorceu-se até cair no chão, encolhendo-se. Enquanto passava a mão no chão, ela ia se enchendo de microorganismos novamente, todos sujos. Encolheu-se até ficar pequenininha. Pequenininha e vermelha, pois seu rosto parecia que ia explodir. Os grunhidos que sua garganta fazia eram verdadeiramente demoníacos. Sua pele pipocou em questão de segundos. Ela tremia, encolhida, cada vez mais rápido, em verdadeiras convulsões.
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Quando aquele sofrimento parecia estar chegando a um momento insuportável, um jorro de secreção negra e gosmenta saiu de sua boca. A partir de então, ela se acalmou como um casal após a cópula.
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Mary Blaigdfield ficou ali, como um verme, no chão do banheiro, envolta em sua secreção nojenta, repleta de imundos microorganismos.
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— Você precisará de muita água corrente agora... — e o outro foi embora impassível.
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Ela é Mary Blaigdfield e ela não quer falar sobre o Kentucky.
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quarta-feira, 4 de março de 2009

O sábio Kindâma

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para Walter Santa-Helena

I

Vinha o Rei Pându
feliz pelos campos
de flores cheirosas,
pois a primavera
cobria as montanhas.

Brilhantes botões
amarelos, onde
voavam abelhas
pretas. Atmosfera
fresca: sol e brisa.

Mádri, sua jovem
esposa que ia
ali adiante
com o sári de seda
(gentil, balançando)

cantava baixinho
só para si mesma
e, de vez em quando,
parava e colhia
uma flor, sorrindo.

O sol quente brilhou
bem por detrás dela,
no que o rei pensou:
“Mas como ela é bela!
E eu não posso tê-la...”


II

Ele aproximou-se,
e ela sorriu –
sua silhueta
era graciosa
contra a luz do sol.

Brotou de repente
uma sensação
de causa evidente:
já fazia anos
que a abraçara.

Deixando cair
no chão os legumes
que colheram juntos,
foi rumo à esposa
em grande alvoroço.

Imediatamente,
Mádri intuiu
os seus sentimentos.
Notando o desejo,
ela teve medo.

“Rei”, tentou dizer,
“controle a mente
se quiser viver!”
Levantou o braço,
fez não com a cabeça.


III

Porém o Rei Pându
ignorou de todo
aqueles avisos
e foi como um louco
ao não-permitido.

Abaixando os braços
abertos de Mádri,
ele os colocou
ao redor do próprio
corpo, com malícia.

E, desesperada-
mente, a princesa
tentou se livrar
dos braços do Rei
que, tomado, ria.

Caindo na grama
macia, os dois
sentiram-se livres,
vivos e sagrados,
assim como os bois.

A princesa presa
em seus braços firmes.
Ele a apertava
forte contra o solo.
Boca atrás de boca.


IV

De súbito, ele
sentiu em seu peito
uma dor terrível.
Tossindo sem ar –
um grito abafado.

Com Mádri ao lado,
Rei Pându deu seu
último suspiro
e então morreu,
deixando essa vida.

“Oh!”, Mádri gritava.
Também soluçava,
não podia crer.
Em vão balançava
o corpo do Rei.

Era muito tarde
para qualquer coisa:
era a maldição
do sábio que tinha,
enfim, se cumprido.

Tentar procriar
estava proibido,
o Rei muito bem
que sabia disso
(mas não deu ouvidos).


V

Muitos anos antes,
caçando entre as árvores,
Rei Pându flechara
acidentalmente
o sábio Kindâma

que tinha tomado
forma de um veado
e ia gerar
um filho na esposa.
Para libertar

Pându de seu karma,
O sábio disse ao
Rei que se algum dia
tentasse ter filhos,
ele morreria.

Foi por isso que
ele decidiu
nunca fazer sexo,
viver uma vida
como a dos ascetas.

É essa a história
do Rei que partiu
deixando para trás
suas duas esposas
e os seus cinco filhos.
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segunda-feira, 2 de março de 2009

EX

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Quadro?
Esquadro!
(Quesito esquisito)
Preguiça?
Espreguiça!
(Mero esmero)
Mola?
Esmola!
Marido: ex-marido.
Mulher: ex-mulher.
Ta dual?
Estadual!
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quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Gráfico

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O espelho d’água tudo duplica;
a Caxemira é uma folha de papel com tinta fresca
que Deus dobrou ao meio e abriu de novo.
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Língua Afiada

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Ah, mosquinha...
Ah, mosquinha...
Papou mosca.
Lagartixa...
Lagartixa...
Papou mosquinha.
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A idéia de Arthur

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A idéia era recém nascida: original, revolucionária e impactante. Coisa rara, para poucos, dessas que só se tem poucas na vida. Uma idéia capaz de transformar as coisas da forma como elas se encontram. Capaz de redefinir conceitos e paradigmas. Resumindo: uma idéia e tanto!

Ela chegou à cabeça de Arthur na tarde de um dia chuvoso. Ele certamente deveria ter reunido os pré-requisitos para o seu aparecimento. Estava relaxado, havia estudado bastante, tinha consumido todos os elementos necessários para a sua formação. Era uma questão de tempo: com tudo ali na sua cabeça, uma hora, o seu inconsciente resolveria abrir espaço para ela, a magnífica idéia que mudaria o mundo.

Quando Artur se deu conta pela primeira vez que tinha tido uma idéia daquele tipo se assustou. Não era coisa comum de se ter assim a qualquer hora. “Tenho que botar isso no papel” — pensou. E se pôs a procurar uma folha em branco e uma caneta.

“Trrrriiiiimmmm”.

Toca o telefone. Era Amanda, a namorada de Artur. Conversa, desentendimento, reconciliação. O que ele tava fazendo mesmo? Bem, era melhor tomar um banho porque em pouco tempo ele deveria estar na casa da namorada.

Arthur adorava massagear seus cabelos cheios de espuma. Ele achava aquilo relaxante. Realmente aquele ato devia estimular o pensamento do rapaz, pois, naquele momento, a idéia retornou com toda força à sua mente.

Era isso que ele estava indo fazer quando o telefone tocou! Mas, naquele momento, com seu corpo repleto de espuma, seria impossível anotar qualquer coisa que lhe passasse pela cabeça.

Ele estava se enxugando quando o telefone tocou novamente. Amanda já estava pronta. É, ele sempre perdia a hora lavando o cabelo e, agora, só lhe restavam quinze minutos para estar na frente do prédio da namorada.

Apressou-se, mas foi inútil. Ouviu reclamações quanto ao atraso.

Foram assistir a um filme bobo, e comeram em um local igualmente bobo. No fundo, formavam um casal um pouco bobo.

Chegaram tarde em casa. Amanda dormiu na casa de Arthur esta noite. Antes de dormir, a idéia que estava em sua cabeça, foi em que ele prestou menos atenção: Amanda era bonita e encantadora.

Mas a idéia era não só muito boa como persistente, pois continuou ali, na cabeça de Artur, durante toda a noite. Levantar? Estava tão confortável ali na cama. O corpo de Amanda o esquentava do frio do ar-condicionado e os travesseiros já estavam posicionados da maneira que ele gostava. A idéia podia esperar até amanhã.

Não, ela não podia. Naquela madrugada a idéia se irritou com Arthur e foi embora. Rumou para a cabeça de outro que tivesse a coragem, ou a disposição de botá-la em prática.
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Acordou sem se lembrar mais dela. Havia se esquecido. Só foi se recordar que já havia tido aquela idéia alguma vez na vida quando, meses depois, abriu os jornais e viu como a pessoa que a havia tido havia ficado famosa e conceituada. Ele se xingou por dentro, mas de nada adiantava. Arthur era mesmo bobo, e as boas idéias não encontram ambientes confortáveis na cabeça de gente deste tipo.
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terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Mims

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Eu sou falso
o tempo todo.
Infinitas faces
convivem em mim.
Por vezes, brigam entre si,
se acusam, se sabotam.
Mas também sabem conversar,
se divertir, se dar prazer.
Para as grandes decisões
são realizadas assembléias
em infinitos salões
repletos de mims.
Cada um tem sua vez,
tem a voz, diz o que pensa.
Às vezes, do fundo do salão,
ouve-se um grito:
“Paremos com essa palhaçada.
De volta com o Eu verdadeiro!”
Mas o presidente em exercício da assembléia responde:
“Eu verdadeiro se foi,
para nunca mais voltar...”
Um silêncio sepulcral
ecoa pelos infinitos salões,
e aos poucos a reunião recomeça
com suas grandes decisões.
Para alguns muito intrigante.
Para mim muito normal.
Por isso não se engane,
não me acuse de engodo,
pois vou logo te avisando:
eu sou falso, o tempo todo.
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Entrevista com Dapieve

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A EMBRANCO CONSEGUIU JUNTAR UMA DAS APOSTAS DA NOVA GERAÇÃO DE POETAS CARIOCAS COM UM PROFESSOR DE COMUNICAÇÃO DA PUC, ESCRITOR E CRONISTA DO JORNAL O GLOBO. JÁ RECONHECERAM OS PERSONAGENS? NÃO ESTÁ NEM A FIM DE FAZER UMA PESQUISA RÁPIDA NO GOOGLE? DESVENDAREMOS ENTÃO: LUCAS VIRIATO, EDITOR DO JORNAL PLÁSTICO BOLHA, AUTOR DO LIVRO MEMÓRIAS INDIANAS, PELA EDITORA IBIS LIBRIS. E ARTHUR DAPIEVE, QUE ACABA DE LANÇAR O LIVRO BLACK MUSIC, PELA EDITORA OBJETIVA. VALE MUITÍSSIMO A PENA CONFERIR O BATE-PAPO.
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Lucas Viriato – Pensando na EmBranco, no Plástico Bolha, nessas mídias alternativas que geralmente nascem no ambiente universitário, queria saber o que você pensa delas, que em outras épocas, na ditadura, por exemplo, eram tão comuns.

Arthur Dapieve – Há a desmobilização. É uma boa observação. Pode parecer paradoxal, mas algumas coisas eram mais fáceis na ditadura. Falar contra o poder, por exemplo. Porque era uma coisa distante, ele estava lá e você não tinha nada a ver com ele. Com a redemocratização fica mais difícil porque você tem participação. As pessoas que elegeram o Collor, elegeram o Lula e o Fernando Henrique. Você ajudou a fazer aquilo. E por parte da impressa, houve sim essa desmobilização. Eu me formei aqui na PUC em 85 e existiam muitas publicações alternativas vinculadas ou não ao departamento de Comunicação. Hoje você tem o Jornal da PUC, que é vinculado à universidade, mas fora isso tem pouca coisa. Mesmo com a vantagem da internet, que exclui o ônus do papel, que vocês sabem como é caro...

Lucas Viriato – Sim, sabemos!

Arthur Dapieve – Pois é, mesmo com a possibilidade do Blog (e outras ferramentas), não vemos articulação, um empenho em mobilizar. Apenas iniciativas individuais e isoladas. Eu acho que tem uma tendência na PUC, talvez mais do que em outras universidades, de o aluno achar que tudo é muito fácil. Sei que existe um pessoal que se esforça muito para estar aqui, mas o aluno padrão da PUC teve a vida um pouco fácil. Estudou em boas escolas, passou facilmente no vestibular e paga sem problemas a mensalidade. Aí tem uma atitude meio blasé que me irrita. Porque ensino não é uma relação mercantil do tipo você paga essa mensalidade durante x anos e eu te dou o “pacote Comunicação” ou o “kit Letras”. É uma troca. Até entendo que muitas vezes essa atitude é estimulada pelo lado dos professores...

Lucas Viriato – Você faz sua parte?

Arthur Dapieve – Eu faço minha parte: tô aqui todo dia, corrijo prova, estimulo trabalhos e não vejo resposta. Esse tipo de atitude condiz com essa pouca vontade nas mídias alternativas.

Lucas Viriato – Vamos falar de quem está começando na literatura hoje em dia. Com essa opção de mídia impressa, com alguns blogs de qualidade e revistas que revelam talentos, qual seria o caminho para quem está começando hoje? Eu tenho minha experiência pessoal.

Arthur Dapieve – Como foi sua experiência?

Lucas Viriato – Eu vejo que tem a questão de ser bom ou não, mas tem uma realidade que envolve mercado e dinheiro. Tem que ter dinheiro.

Arthur Dapieve – Tem até uma coisa que precede isso. As pessoas não estão escrevendo muito, não estão praticando. E escrever é prática. Escreve-se muito nas aulas o que se obriga, mas não é uma vontade. E isso se torna chato. Mas quem consegue praticar, consegue pagar ou atrair a atenção de alguém, acaba ganhando um destaque.

Lucas Viriato – Você escreve muito sobre música. Você gosta de ler poesia? Tem o hábito?

Arthur Dapieve – Eu sou um mau leitor. Eu não tenho o hábito. Na verdade eu tenho um gosto muito específico pra poesia, o que faz com que boa parte da produção fique fora do meu radar. Eu gosto de uma poesia usando prosa com dicção cotidiana, meio oral. Coisa que vejo na Alice Sant´Anna ( poetiza carioca, estudante de Letras da PUC). Um tipo de leitura que você chega na frente da platéia e lê. Se ficar mais no campo do experimento formal, não me toca tanto. Mas é claro que reconheço a importância. Poetas que gosto, como Ezra Pound e Stearns Eliot falam, você consegue ler aquilo. Pound dizia que sua experimentação tornava aquilo freqüentemente possível de entender. E a experimentação formal é responsável poruma larga parte da produção. Acho que a poesia mais falada me lembra mais a música e se adapta melhor a ela.
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segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Nas ruínas da Igreja de Santo Agostinho

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Como formigas em seu formigueiro
os arqueólogos de Goa Velha
iam passando os sacos de areia
a pesada pá, os pedaços de pedra.

Em longuíssima fila
passavam o passado
de mão em mão.

Um turista passa saliva entre a fila
— ficam perdidos.
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Morte

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O velório foi no meio da rua. Montou-se uma tenda roxa em frente à casa. Os amigos chegavam para passar dois, três dias com a família do morto.

Durante a noite, uma banda de homens tocava tambores e cornetas a cada meia hora. Pela manhã, chegaram as mulheres para chorar copiosamente, a cada meia hora.

A experiência auditiva do velório entrava pela janela do quarto de hotel de onde, no fim de dois, três dias se poderia ver o cortejo levando o corpo para a cremação em um carro de madeira, deixando um rastro de flores nas ruas de Pondicherry.
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sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Amor de armário

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Que frio estava fazendo! E aquelas portas de madeira prensada não ajudavam a manter o clima dentro do armário mais aconchegante. Ainda mais por se tratar de um armário de cozinha, onde tudo é azulejado e frio. E, cá pra nós, aquelas dobradiças já deveriam ter sido trocadas havia um bom tempo, a porta mal fechava... E isso só agravava em muito o frio que os produtos guardados no armário sentiam naquelas longas noites de outono — que estavam mais para noites de inverno.

Tudo começou após uma ida ao supermercado. Compras do mês. Ele sabia muito bem como era aquilo. De repente, a prateleira que estava quase vazia, privativa para aqueles produtos que não foram consumidos, se enchia de novidades. E ele sempre sobrava. Para falar a verdade, ele não sabia nem por que havia sido comprado. Ninguém naquela casa gostava de cereal de aveia, e isso era certeza.

Biscoitos diversos, fermento em pó, alguns produtos de compota, torradas, adoçante líquido, palitos; Nescau era na prateleira de baixo... Em meio àquele redemoinho de novos colegas, algo em especial havia lhe chamado a atenção: aquela pequenina caixinha vermelha de uvas passas. Como era graciosa aquela rapariga da embalagem! Cabelos morenos longos, pele alva, bem vestida. Muito nova para ele, pensou, e provavelmente deveria ser de consumo rápido. Se ficassem uma semana juntos naquela prateleira seria muito.

Em poucos minutos, todos os produtos foram guardados em seus devidos lugares para serem esquecidos ali até a hora que alguém sentisse fome ou a empregada resolvesse fazer um bolo.
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Naquela mesma noite, algo inusitado, ou nem tanto, sucedeu. Uma barata das grandes entrou junto com o frio pela porta mal fechada. A rapariga, como toda rapariga, se assustou. Ao perceber o nervosismo da donzela, ele, velho de armário, se pôs a acalmá-la:
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— Acalme-se. Isso acontece de vez em quando. Não tem com o que se preocupar. Você está bem fechada?
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— Estou... Quer dizer, acho que estou — respondeu aflita.
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— Estou certo de que deve estar. Produtos recém-chegados raramente vêm abertos — disse, tentando abrandar o nervosismo da moça.
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— Mas... Mas... Ela está em cima de mim...
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— Isso é porque você provavelmente deve ser docinha. Deve ter ficado junto de alguma amiga aberta no supermercado e pegou o cheiro. Acontece. Não há com o que se preocupar; logo, logo ela vai embora.
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Eles ficaram juntos durante toda a noite. Uma hora a barata se foi, mas eles continuaram um com o outro até adormecerem.
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No dia seguinte, acordaram bem cedo, devido à claridade que entrava pela abertura da porta.
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— É claro aqui — disse a moça com voz de quem acaba de acordar.
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— Claro pela manhã e frio à noite! Esta porta já devia ter sido trocada há muito tempo, mas aqui eles não dão muita atenção a esses detalhes.
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Depois de algum tempo, ela continuou:
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— Obrigada por ontem à noite. Você foi... muito gentil.
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— Que isso! Não fiz mais do que a minha obrigação. Eu sei como são essas coisas. Já estive numa prateleira de supermercado uma vez, mas isso faz muito tempo. Sei como é difícil esse período de adaptação. Durante a vida inteira, estamos acostumados a ver e interagir com produtos que são milimetricamente idênticos a nós. Mas aí, de repente, alguém nos tira de nossa prateleira, nos joga num carrinho. Daí pra frente é esteira, leitura ótica no nosso código de barra (constrangedor!), saco plástico, mala do carro sacudindo e, sem mais nem menos, caímos aqui, nesta prateleira fria, repleta de produtos que nunca imaginamos existir...
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— Repleta de baratas também!
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— Elas não costumam vir muito aqui — disse, sorrindo — mas, de qualquer forma, uma hora nos acostumamos com elas.
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— Tudo é tão traumático. Se não fosse você ontem à noite, eu não sei como teria agüentado. E eu não sei nem o seu nome.
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— Pode me chamar de Quaker. E você? Como se chama?
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— Bem, quando fui retirada de minha prateleira, falaram “Há quanto tempo não via essas passas!”. Acho que meu nome é Passas.
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— Não, “passas” é o que você é. Do mesmo jeito que eu sou um cereal de aveia. O que tem escrito na sua embalagem? – A forma como Quaker falava era culta e explicativa, como se fosse portador de grandes conhecimentos. E como isso encantava a insegura rapariga.
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— Deixe-me ver... Sunrise Raisains Secs, não sei se é assim que se pronuncia.
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— Um nome em francês! Encantador!
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Quaker e Sunrise continuaram conversando por muito tempo. Falavam sobre tudo: experiências pessoais, memórias do supermercado, a vida naquela prateleira. Quaker contava para ela os hábitos da família e juntos ficavam imaginando o que haveria nas outras prateleiras.
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Uma hora, já de noitinha, o já esperado aconteceu. Eles estavam juntos, da mesma forma como tinham sido guardados. Pela porta mal fechada, avistavam a janela da cozinha e, através dela, um magnífico céu estrelado. O frio também contribuía para uma atmosfera bem romântica.
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— Posso te perguntar uma coisa? — titubeou Sunrise com sua voz graciosa.
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— Claro.
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— Você acredita em reciclagem?
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— Não sei. Não costumo pensar muito nessas coisas.
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— Me acha boba? — perguntou, insegura.
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— De modo algum. Acho que o bobo devo ser eu, por ser tão objetivo e divagar pouco sobre a vida. Você acredita?
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— Acredito, sim. Eu acho que tudo não pode acabar assim, simplesmente indo pro lixo. Imagino que deve ter algo mais, algo além do que conhecemos.
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— É capaz. Não costumo pensar muito sobre isso...
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Do mesmo modo que ela se encantava com a sabedoria de Quaker, ele era fisgado pelo ar misterioso que ela exalava em suas palavras.
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— Sabe, ontem à noite você me chamou de docinha... — disse em tom apaixonado.
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— Chamei? Desculpe a indeli...
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— Não precisa se desculpar. (pequena pausa) — Eu gostei.
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E, daí em diante, eles se amaram como um casal em lua-de-mel. Ficaram se amando, olhando para as estrelas e, enquanto todos os produtos daquele armário sentiam um frio danado, eles reclamavam do calor. Ela pouco se importava com a idade avançada dele, até gostava de seus cabelos brancos. E ele nunca havia imaginado que conseguiria uma moça tão bela em toda sua vida.
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O tempo foi passando e, com ele, os dois consolidavam a relação. Mesmo aparentemente não tendo nada em comum, descobriram juntos que ambos eram ricos em fibras. Mas não era só isso que os unia. Os gostos musicais e artísticos também. Apesar de que o sonho da vida de Sunrise era se tornar uma latinha de sopa Campbell de Andy Warhol. Já Quaker não apreciava muito o artista, achava que ele os expunha demais e, assim, deturpava a condição de produto, inerente a todos eles. Mas não era Warhol o maior motivador das brigas do casal:
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— Você acha que eu não percebo como você olha pra Gina dos palitos??? — revelou um dia, em tom irritado.
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— Como? Ah, pelo amor de Deus! Deixe de ser ciumenta dessa maneira! Você enxerga situações que não existem!
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— Não existem?!? Quaker, eu te conheço. É só passar uma loirinha que você se assanha todo.
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— E você? Já reparou como aqueles “monges” do chocolate em pó te comem com os olhos? De monges não têm é nada. São uns safados, isso sim!
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— Ei, fale baixo. Não queremos criar um clima ruim na prateleira.
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Mas essas discussões eram passageiras e, na verdade, só adicionavam aquele ciúme normal, que apimenta e estimula os relacionamentos. E por falar em apimentado...
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— E aí, garotão? Não tem caloria pra noite toda não? — disse com um sorrisinho na boca.
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— Vou te mostrar quantas gramas têm aqui nessa embalagem!
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— Levadinho!
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A idade avançada de Quaker não atrapalhava em nada a vida sexual do casal. Ele era uma máquina e ela, insaciável.
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De vez em quando, alguém abria o armário e pegava um biscoito ou o adoçante. E foi numa dessas vezes que passou pela primeira vez na cabeça de Quaker o que ele sempre soube: aquele amor, a vida a dois, não iria durar para sempre. Ele sempre soube, desde a primeira vez que viu Sunrise, que uma hora ela seria consumida e ele ficaria ali, esquecido no armário, como sempre. Isso já havia ocorrido diversas vezes. Nenhum produto das compras dele ainda estava ali. Foram todos embora aos pouquinhos, ou comidos no almoço, ou num lanchinho rápido. E ele ali, resignado a permanecer esquecido na prateleira. Por vezes, pensava que tinha sido comprado por engano e que iria passar da validade ali, sem que ninguém o notasse.
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Como seria difícil suportar a solidão no armário sem ela! E depois que ela se fosse, também iriam todos os que conviveram com eles naquele armário. Chegariam novos produtos, que não fariam a menor idéia de quem era Sunrise e do que o amor deles tinha representado. Chegaria o dia em que só ele saberia que esse amor tinha existido, e — quem sabe — ele não tivesse existido só na sua cabeça, já que ninguém mais partilharia com ele essas memórias. Ficaria velho e perturbado.
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Chegará o dia — porque um dia todos os dias chegarão, até este — em que consertarão a dobradiça da porta. Ou — quem sabe — comprarão armários novos? E ele se lembrará dela, do frio que sentiam, das estrelas que viam através da janela. E sentirá um aperto forte no fundo do peito, uma vontade apenas de poder contar pra ela essa novidade. Chorará por horas, dias sem fim. Chegará até mesmo — veja só que besteira — a desejar nunca tê-la conhecido, para não ficar condenado a uma vida posterior de saudades e sofrimento. Mas, no fundo, sabia que só conhecera o que é a vida naquele dia de compras, quando avistou pela primeira vez aquela menina ainda sem nome. Aquela menina apavorada com a barata em cima dela.
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Só de imaginar isso tudo, Quaker emudecia.
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— O que houve, amor? Por que você está com essa cara?
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— Nada não, querida. Pensando... Será mesmo que existe aquela história de reciclagem? Será que no passado a gente não pode ter sido um produto só?
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— Às vezes, eu penso nisso. Quem sabe, no futuro, nós não nos tornaremos os dois uma só embalagem, guardando o mesmo produto?
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Pensar no futuro era fatal para Quaker. Todos os fantasmas da separação voltavam à sua cabeça e, ao seu rosto, voltava aquela expressão que tanto incomodava Sunrise.
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Quando ela ia perguntar novamente sobre o que ele estava pensando dentro daquele chapéu, foi interrompida. A porta se abriu e a empregada enfiou o rosto na frente da prateleira. A primeira a ir embora foi Sunrise, quando ainda estava pensando no que afligia o companheiro. Depois, foi a vez do pote de açúcar — mas este sabia que iria retornar. E, por fim, nosso querido Quaker, que também faria parte da receita!
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É, por essa ele não esperava. Nunca imaginou que chegaria o dia em que seria consumido. E ainda mais: não foi preciso se separar de Sunrise. Seriam consumidos juntos, tendo seu amor eternizado.

Ingredientes:
200g de flocos de aveia
200ml de água
Uma casca de laranja ou de limão
Duas maçãs descascadas e picadas
Uma colher de chá de açúcar
Uma colher de chá de erva-doce
50g de passas de uvas

Modo de preparo:
1. Cozinhe a aveia em água fervendo com uma casca de limão.
2. Junte as maçãs picadas, as passas de uva e a erva-doce.
3. Misture, adicione açúcar e introduza numa forma untada.
4. Asse em forno moderado durante 20 minutos.
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Esta é a história do amor entre Quaker e Sunrise, que tiveram o seu conteúdo unido numa deliciosa receita de bolo de aveia com passas. Suas embalagens foram jogadas juntas na lata de lixo. Se foram reciclados ou não, ninguém sabe. E, mesmo se alguém soubesse, não viria ao caso estragar os mistérios da vida.
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A boca

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Havia paz
antes da boca
se abrir. Então
primeiro veio o verbo
depois o nome
o pronome e o advérbio.
Agora, só
resta a esperança.
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Metempsicose

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Rajastão, terra de reis,
da ruralíssima vida.
Terra dos desertos onde
outrora pereci. Hoje,
cruzando-o neste carro,
léguas-luz, já me esqueci.
Em minha boca um catarro,
uma ânsia de cuspir.
Aos olhos cores espasmos
voam leves com o vento.
A lenda da vila rosa
sei de cor, não me esqueci
O corpo é que pede a busca
de uma jornada que ofusca
banhando-me com o que já vivi.
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quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Faxina geral

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Quando Manuel chegou em casa naquela tarde viu que havia sido feito uma grande faxina em seu quarto. Lúcia, a empregada, trabalhava na casa de Manuel havia alguns anos e era excelente empregada. Passava sempre pelo seu quarto na sua ausência, alinhando e empilhando a bagunça, tirando a poeira, passando um pano úmido no chão.

Contudo, em determinados dias Manuel percebia que o seu quarto havia recebido uma atenção mais do que especial e este era um dia como aqueles. Nessas ocasiões, as mudanças iam além do simples alinhamento de papéis e arrumar de cama, seus pertences realmente mudavam de lugar, coisas novas sumiam enquanto coisas há muito dadas como desaparecidas reapareciam — e a limpeza, é claro, era completa.

Mas, naquele dia, Lúcia tinha exagerado. As paredes estavam incrivelmente mais brancas. Sim, as paredes do quarto de Manuel sempre foram brancas, mas naquele dia elas estavam muitíssimo mais brancas do que o normal, com um brilho único. Caminhando pelo lugar, Manuel pôde perceber que a rearrumação dos móveis lhe proporcionara uma compreensão inteiramente nova da arquitetura do quarto. Ganhou-se espaço!

Indo até a estante, ele pôde perceber que certamente Lúcia deveria ter se confundido um pouco no tirar e colocar dos livros na estante, pois os livros de cinema estavam no local errado e ele não conseguia encontrar seus livros favoritos. E para que Lúcia havia subido com a caixa de areia do gato para o quarto?

Tudo estava tão estranho, Manuel não conseguia encontrar suas coisas... A faxina mudou o odor do local, ele não se sentia mais em casa ali. Para que aquele exagero de faxina, para que tanta arrumação? Ah, e de que canto longínquo da casa ela teria tirado aquele violão? (Manuel não tocava violão).

Aquilo tudo precisava de uma explicação. Foi até a cozinha e viu Lúcia na pia, lavando a louça. Assim que ele ia perguntar de onde tirara o violão, teve as palavras interrompidas na garganta com o choque que tomou com o novo visual da empregada. Lúcia havia feito luzes, estava loira! Não só loira, como mais gorda, alguns centímetros mais baixa e — meu Deus, que creme de pele novo será esse? — branca! Em um espaço de tempo curtíssimo, Lúcia embranquecera; simplesmente da noite para o dia!
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Ele não conseguiu falar nada. Ela também não, parecia assustada. Olhando ao redor, Manuel percebeu que tudo estava mudado, aquela cozinha havia sido reformada! Mas aquilo tudo somente começou a deixar Manuel realmente angustiado quando seu gato rajado passou preto. Saiu correndo pela porta e pôde ver que a maçaneta fora mudada, e até mesmo as flores do jardim eram outras.
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quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Izabé

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Mordeu as maçã
Fumou os baseado
Queimou os sutiã
Libertou os escravo
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Capa da MegaZine, d'O Globo

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O Formalista e o Hermeneuta

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(a partir do cordel:
Discussão do macumbeiro e o crente
de Gonçalo Ferreira da Silva)


A leitura de um texto
é uma coisa pessoal,
cada um tem sua própria
interpretação pra dar.
Aquela mesma história
que cá leio dessa forma,
podes ler de outra lá.

Formalista e Hermeneuta
não pensavam igualmente,
pois enquanto o Formalista
diz que entendeu direito
Hermeneuta, dedo em riste,
batendo forte no peito,
diz: “Eu sim que entendi!”

Porém, embora pensassem
de maneira diferente,
nunca tinham discutido
porque até o presente
não tinham, por sorte rara,
nenhuma oportunidade
prum encontro frente a frente.

Mas um dia o Formalista
rumo à academia
avistou o Hermeneuta
que seguia seu caminho,
caminhando ao seu estilo.
Já foram trocando insultos,
discutindo as leituras.

Onde os dois se encontraram
tinha uma praça bela
e um homem na barraca
vendia ali seu cordel.
Foram lendo um livrinho
para servir de exemplo
pro que iriam discutir.

“Mas que erro monstruoso!”
Foi dizendo o Formalista
“És um péssimo leitor,
pois o fio que te guia
não está no próprio texto
o que te dá o pretexto
para ler como quiser.”

Hermeneuta respondeu:
“Veja bem, seu ‘cientista’,
bem metido a lingüista,
leio como eu quiser.
quem vê só o próprio texto
esquece o que é mais simples:
o que ele quer dizer.”

Não era tarde da noite,
umas dez horas, e tantos,
começou a chegar gente,
vinda de todos os cantos,
outros vinham feito loucos
os que há pouco eram poucos
já não se sabia quantos.

A praça ficou lotada
de toda espécie de gente,
muitos pelo Hermeneuta,
outros pelo Formalista.
Os aplausos ao combate
serviam para o debate
ficar cada vez mais quente.

Hermeneuta foi quem disse:
“Olha, você quer saber?
Da leitura você tira
toda chance de prazer
O que diz é por um triz:
‘impossível conhecer!’
Lê tão perto que não vê.”

E o Formalista falou:
“Você não diz o que quer,
mas o que a língua permite.
Não precisa ficar triste...
Também, ler como quiser,
já é coisa de um místico,
alguém com superpoder.

Pode chamar o deus Hermes,
ou alguma entidade.
Mas, não espere de pé
pra não doer a lombar.
Sua leitura é social,
já o encaixe desse texto,
isso nunca vai mudar!”

E o Hermeneuta falou:
“Um Deus não é pra ser chamado
Pra o nosso bate-boca.
O sentido encontrado,
o que o autor desejou,
é o mesmo, tanto hoje
como há muito tempo atrás.”

Formalista respondeu:
“Veja, enquanto a sua
linda interpretação
busca um sentido oculto,
eu olho a composição.
Vê se entende, criatura!
Não enxerga a estrutura?”

“Sim, enxergo a estrutura
muito além da própria forma.
Acho que tu não devias
fazer essa vista grossa
à fenomenologia.
Tenha ao menos a decência
de não negar a essência!”

O outro seguiu a glosa:
“Muito além de duvidosa,
sua leitura é perigosa.
Muito sangue já correu
devido ao que se escreveu.
Sua visão tradicional
está longe da atual.

Texto e realidade
já nos fazem a bondade
de entregar numa bandeja
qualquer coisa que nos seja
preciso para entendê-los.
Não tem o que complicar,
nada atrás pra desvendar...”

E Hermeneuta dispara:
“Eu fico me perguntando,
se você não lê jornal?
Crê que o que está se falando
não se liga ao real?
Se recebe um bilhete,
confunde com um enfeite?

Faço ainda nova crítica:
Toda a tua estilística
Não passa de niilismo!”
E um espectador quis
Hermeneuta agredir
A turma do “deixa disso”
Fez o intruso sair.

A discussão nesta altura
já parecia uma briga,
ia ofensa, vinha vem ofensa
e no meio da intriga
que parecia arruaça
a platéia achava graça
de dar cãibra na barriga.

Formalista prosseguiu:
“Texto só fala de texto!
O que leste foi mentira,
e ela está em ti.
Não tem o que insistir.
Tu és mais que junguiano,
Verdadeiro leviano!”

“Sua análise se esgota
nela mesma. Ela é, pois,
um simulacro da obra;
só formaliza uma coisa
que no texto é informal.
Se crês na totalidade,
é por pura vaidade!”

Eles tinham energia
na garganta como poucos
dando socos no espaço,
já completamente roucos.
Uns riam pelo que viam,
outros riam dos que riam,
era um festival de loucos.

Ninguém mais se entendia
no meio da discussão.
Semiólogo deixou
o cordel cair no chão.
Foram partindo pra briga,
e não deram a menor bola
nem pra essência nem pra forma.

Tanto soco, pontapé,
que, quando se viu, até
Formalista interpretou e
nexo oculto revelou.
Parecia possuído,
tomado por um espírito.
Vejam só, mas quem diria...

Hermeneuta em outra mão,
tamanha a dificuldade
de sustentar sua visão,
foi partindo pra maldade,
saiu dando safanão;
esquecendo o que aprendeu
com os livros que já leu.

As pessoas ao redor
não sabiam o que fazer.
Separar aqueles dois,
ou deixar couro comer?
Não podia ser possível,
mas será que aquela era a
única chance de síntese?

Quando o guia incorporado no
Formalista foi embora
novamente pro outro lado,
todo o pessoal presente,
entre charadas e risos,
muitas risadas festivas,
mangavam do formalista.

E também o Hermeneuta
não escapou à zoação.
Com a cara bem marrenta,
seguiu sua direção,
saindo da discussão.
Fez o mesmo o formalista,
Prosseguindo seu caminho.

Hermeneuta em sua casa
lia o poema da briga
dando a vitória por certa.
De outro lado o Formalista,
na sua academia,
também lia a epopéia
certo que tinha vencido.
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