segunda-feira, 23 de março de 2009

Contos de Mary Blaigdfield – a mulher que não queria falar sobre o Kentucky (parte V)

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Cabelo novo. O visual ficou um pouco diferente. Para melhor, é claro. Mais feminina. Mas para isso teve de aturar três horas naquele lugar. Conversas que não a entretinham rondavam por todas as partes. Muitos olhos se entreolhavam nos espelhos. Um odor desagradável de cabelo queimado tomava conta do local. Gritinhos, barulho de secador, fofocas!

Aquele lugar não tinha nada a ver com ela — não tinha paciência com esses assuntos. Nem paciência, nem tempo. Era uma questão de prioridades. Todo o projeto estava em risco! Segredos inimagináveis estavam para ser revelados! Um grande pesadelo... E, no meio de toda a confusão, de todos os estresses dos últimos dias, ela ainda havia arrumado um espaço para ele na sua agenda.

— Corolla branco. É o da senhora?
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— Sim, obrigada.

Mary Blaigdfield pegou o carro e pôs-se a caminho do local combinado. Dirigia com cuidado, pois suas unhas ainda não haviam secado. Sorte o carro ser automático, pois ela não dirigia muito bem. Afinal, ela não entendia nada sobre carros.

Sinal vermelho. Oportunidade para se olhar no espelho. A franja estava mais clara do que o resto do cabelo. “Que idéia foi essa de franja?” — pensou, irritada. Ela tentou, mas foi incapaz de se recordar de uma vez sequer que tenha saído do salão satisfeita.
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Dirigindo por mais alguns minutos, refletiu sobre todos os acontecimentos, uma coisa acontecendo por cima da outra. Isso gerava uma angústia muito grande.
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Finalmente chegou ao prédio de Henri Havengard, que a esperava com um pequeno buquê de flores sob o braço esquerdo, junto ao corpo.

“Ah, Henri... Flores... O mesmo Henri de sempre...” — o coração de Mary se rendeu aos eternos encantos de um antigo amor. Todas as barreiras desmoronaram com aquele singelo gesto de delicadeza.

Parou o carro rente ao meio-fio para que Henri entrasse. Ele abriu a porta e, com um largo sorriso, sentou-se no banco do carona.

— Isto é para você, a mulher mais encantadora de todo o leste!

— Oh Henri! Não preci... — foi interrompida. Oh, meu Deus, o que era aquilo? Flores roxas! A botânica já vinha usando Mendolatium para a produção de novas flores havia algum tempo, mas mesmo assim ela se assustou — Henri acabou notando seu espanto.

— O que houve? Há algo de errado?

— Não — disse tentando parecer mais calma. — É que... Sou alérgica...

— É alérgica a flores? Não me lembrava disso.

— Não, não. A Mendolatium... Essas flores são produzidas a partir da mutação ao Mendolatium.

— Alérgica a Mendolatium? Desculpe... É que nunca imaginei que algo assim fosse possível. Você sabe, eles dizem por toda parte que...

— Eu sei, Henri. Eu sei o que eles dizem. Vamos deixar essas flores de lado e sair. Isso não é motivo para maiores aborrecimentos. — Mentira. Mary passaria o resto da noite aflita. Henri ressurgiu de muito longe no passado, e isso era magnífico. Mas com ele vinha o Mendolatium, que por sua vez a remetia ao Projeto, aos problemas, ao...

Aquele fluxo de idéias não poderia continuar. “Não nesta noite!” Ela precisava se controlar, respirar fundo e devagar. Era Henri que estava em jogo dessa vez.

— Pronto. Problema resolvido! — disse o sempre simpático homem, fechando a sua janela logo após ter jogado as flores para fora do carro. — Nada de Mendolatium da próxima vez!
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“Oh, Henri, por favor, pare de pronunciar essa palavra...” — pensou, esboçando um falso sorriso pela piada.

— E para onde vamos? — Ela perguntou, mudando de assunto.

— Eu fiz uma reserva para nós no Côté D´Olegan Bistrô. Aposto que devem ter muitas opções sem Mendolatium — disse sorridente, repetindo a piada.

“Henri, chega, por favor...” — pensou, agora se esforçando ainda menos pelo sorriso.

— Então vamos. — disse, dando a partida, antes que ele começasse a pensar em uma nova frase com a palavra Mendolatium.

Ela dirigia nervosa. O silêncio estava começando a se tornar um incômodo; aumentou um pouco o som, que tocava algum sucesso dos anos 70 (Não queria saber do passado). Foi Henri que quebrou o silêncio.

— E então, em que trabalha atualmente? Ainda confecciona jóias?

“Henri, Henri, será que você não dá uma dentro?”

Como ela falaria sobre seu trabalho? Que pergunta!! Parecia que Henri estava fazendo de propósito, alfinetando-a a cada fala. — mas não podia ser verdade. Só de imaginar que Henri poderia saber de algo já enfraquecia todo o seu corpo, fazendo-o tremer. Como ele poderia ter descoberto alguma coisa? Seria esse o real motivo do encontro? Ele estaria envolvido? Ela podia se lembrar de já ter conversado sobre ele com Larie, mas... Ela não sabia mais em quem podia confiar.

— Ultimamente não tenho trabalhado em nada; tirei uns dias pra mim mesma...

— Entendo. Eu continuo na mesma. Os negócios melhoraram por lá. Tio Ben pretende transformar a fazenda em um parque ecológico. Já imaginou aquele lugar repleto de crianças, de animais. Assim como um Jardim Zoológico. Já imaginou Mary? Um Jardim Zoológico?

“Não é possível! Não, Não, Não” — pensou. Coincidência ou não, cada assunto que Henri colocava em pauta era um trauma com o qual Mary teria que lidar em questões de segundos, antes de dar uma resposta ao menos aceitável. Improvável ele saber do incidente do Jardim Zoológico! Mas por que ela estava sendo obrigada a lidar com tudo aquilo novamente?

— Eu estive em um há pouco tempo. — pausa — Você pode me passar a minha bolsa, que está no banco de trás? Preciso de um cigarro...

— Você voltou a fumar? — perguntou Henri, surpreso, enquanto lhe entregava a bolsa.

— Há alguns dias. Tenho passado por momentos um pouco turbulentos.
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— Problemas?
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— De certa forma... Henri, querido, podemos ficar calados enquanto fumo esse cigarro?
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— Ahn? Claro. — respondeu ele, achando que havia errado em algo que havia dito. Não sabia ele que havia errado em tudo!
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Mary Blaigdfield abriu sua janela e acendeu o cigarro, tentando se acalmar. Henri Havengard não desviava o olhar. Ele estava com um certo ar de bobo, como de um cachorro que não entende o que fez de errado para desagradar o dono. Aqueles maravilhosos buracos no jardim não haviam agradado?
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Mary pensou muito, e sobre muitas coisas durante esse cigarro. Poderia ele realmente saber de tudo? Não seria a hora de largar tudo e fugir para algum país distante? Mas ela não era uma criminosa — Fora obrigada a participar daquilo tudo contra a sua vontade.
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E esse sujeito, com cara de idiota, que retornou do passado para lhe fazer toda a lista de perguntas inoportunas que somente as entidades divinas poderiam ter formulado!
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Em meio àquele silêncio — que em situações normais seria desconfortável, mas que para ela era a certeza da tranqüilidade — se podia ouvir somente algum hit dos 70 ao fundo, vindo das caixas de som do banco traseiro.
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De repente, Mary se desesperou ao ver que o filtro do cigarro estava próximo, e com ele chegaria a inevitável pergunta de Henri. Ela deu o último trago e jogou o cigarro pela janela.
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Henri se prepara para dizer algo.
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As mãos de Mary tremem ao volante. Ela já sabe o que ele vai dizer. “Oh não, não hoje...”
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— Mary...
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“Não pode estar acontecendo de novo...”
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— Mary, eu sei...
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“É impossível, é impossível. Hoje não, eu imploro...”
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— ... o que você fez...
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"Não pode ser..."
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— ... no cabelo! É essa franja! Eu estava reparando que ela está mais clara que o resto do seu cabelo. Você já usa esse penteado há muito tempo?
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Ufa, Mary! Essa foi por pouco, hein?
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Ela é Mary Blaigdfield, e ela não que falar sobre o... Sobre o... Vocês já entenderam.
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